8 de março de 2007

Irene Lisboa
1892-1958




A Gravura

E o sonho com uma gravura que havia, muito do meu gosto?Sonhei que aquilo tudo era real: vi-a animar-se, mexerem-se as figuras...Nisto abria-se o portão. Por uma alameda abaixo vinham dois cavaleiros e uma amazona. Ela falava e ria-se e até voltava a cara para trás. Procurava com os olhos um belo cavaleiro, desirmanado do grupo, que montava um cavalo bravio. Também havia mais cavaleiros e amazonas, que se não distinguiam lá muito bem.Mas tudo aquilo era bonito, era elegante.Saíram todos do portão, finalmente, e até uma das damas, com a ideia que teve de arrancar um tronquinho de hera, ia caindo do cavalo abaixo.Deixei de ouvir o trupe dos cavalos e as vozes e vi-me sozinha. Só, só de todo! No meio do campo. Fazia um luar divino. E todo o meu desgosto era de não ser fidalga, de não pertencer também à cavalgada.Pus-me a andar de um lado para o outro e a falar só. Porque não tinha eu ido com eles? Com eles é que eu devia ter ido! À noite vestiria um fato de baile...Olhei para o chão, que me pareceu todo malhado. Eu não devia pisar nenhuma daquelas malhas. Eram de luar líquido. Devia saltar por cima delas, e era o que fazia. Dava cada salto! Cheguei a saltar de árvore para árvore. De cima de uma delas até descobri um salão onde as fidalgas andavam a dançar.Lá lá lá...lá lá lá...lá lá lá...Que valsa tão doce e tão agradável! Conhecia-a tão bem!Eles, de calção de seda e de meia alta, elas, de cauda...Deixem-me dançar também, dizia eu, sem que ninguém me pudesse ouvir. Por fim agarrei-me a uma árvore e pus-me a andar à roda.Mas que vergonha, que vergonha! Descobriram-me!Nisto acordei.
in «Uma Mão Cheia de Nada Outra de Cousa Nenhuma», Porto, Livraria Figueirinhas


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