8 de março de 2007

Ilse Losa
1913-2006





Gosto de observar Teresa a corrigir os cadernos escolares à luz do candeeiro. Sempre que os disparatados erros dos seus pequenos alunos a fazem sorrir, ela inclina a cabeça sobre o ombro, as pálpebras descem-se-lhe ligeiramente e o rosto ganha uma graça meiga e quente. Talvez no conceito geral Teresa não seja uma mulher bonita:
tem feições pouco regulares, a boca muito carnuda, o nariz comprido demais e quando lhe estremecem as narinas faz lembrar um coelhinho. Mas tudo isso se harmoniza com o corpo esbelto de porte direito, com o pescoço alto, a cabeça estreita, o cabelo dum negro brilhante e espesso que ultimamente junta num puxo arrepanhado na nuca.
Teresa dá aulas na escola primária duma zona pobre, num edifício velho, quase a cair, onde largas frinchas por debaixo das portas e das janelas provocam constantes correntes de ar. Se ao princípio manifestara entusiasmo pelo curso, embora apenas o tirasse porque Severino achava ser o curso que levava menos tempo, ficava barato e proporcionava rapidamente o ganha-pão, pouco a pouco foi ficando desiludida.
«As colegas mais velhas batem naquelas pobres crianças a torto e a direito», diz. «Eu só me resolvo a bater-lhes, mas apenas nas mãos, se me aparecem com as orelhas sujas ou piolhos na cabeça depois de as ter repreendido repetidas vezes». Por vezes ela chega desanimada a casa, dizendo não suportar por muito mais tempo o ensino a crianças que, de tão carecidas de carinho e de alimentação, nem conseguem prestar atenção às suas explicações. E começamos a fazer planos para uma livraria, num bairro afastado do centro e de como haveremos de juntar o dinheiro para isso. Teresa ajudar-me-á na arrumação dos livros, no balcão, na caixa.
Dentro de dois ou três anos começaremos a editar uma colecção de livros de pequeno formato, de preço módico, mas de muita qualidade. E havemos de contratar óptimos tradutores para os livros estrangeiros, apresentar capas de bom gosto, havemos de nos prestigiar para progredir depressa, poder dispensar a loja e dedicar-nos exclusivamente às edições. E Teresa gostaria de organizar uma colecção para crianças, com gravuras coloridas, e sempre que estamos com o Renato aconselha-se com ele sobre o assunto... Planos, planos, planos... E depois tudo continua na mesma, Teresa a tentar ensinar as crianças cheias de fome e piolhos e eu a traduzir cartas comerciais a troco de remuneração mais ou menos razoável e livros de ficção por remuneração humilhante, porque o comércio governa e a literatura vegeta.

SOB CÉUS ESTRANHOS, Ed. Afrontamento, 1992


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