Maria Judite de Carvalho
1921-1998
Perplexidade
A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas breves. «Não percebo», disse. Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu. «O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira, aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava alguém com requintes de malvadez. «Isto, por exemplo.» «Isto o quê» «Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade. O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de oito anos, tão subitamente. Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas, os de aritmética e os outros. «Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.» «Não percebo.» «Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão...Nos filmes, nos anúncios...Como é a vida, afinal? » A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem se prepara para uma corrida difícil. «Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca de inspiração. «A vida...» Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava. «A vida...», repetiu. As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas cortadas.
in «O Jornal», 2-10-81
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