Alice Vieira
1943
Carta para Clarissa
Olho para a janela e lembro-me de ti. "Só agora acredito que a Primavera chegou", murmuro, tal como o teu amigo Amaro, olhando-te, a brincar sob os pessegueiros, junto das glicínias roxas que espiavam por cima do muro do jardim. Quando o ar se enche dos cheiros da Primavera, lembro-me sempre de ti. E todas as meninas de fitas no cabelo, caminhando entre os canteiros dos jardins, têm o teu rosto. O rosto que eu construí ao longo destes anos todos - adolescente, luminoso, claro. O rosto que têm sempre as amigas perfeitas que nos acompanham a vida inteira.E tu foste a mais perfeita das amigas. No casarão da minha infância, de janelas fechadas para que o sol não estragasse a mobília, com o chão a ranger noite dentro, sob os passos candenciados da tia Irene (que sofria de insónias), tu eras a certeza de que a vida podia ser outra coisa. Desde o dia que te conheci eu percebi que, para lá da escuridão e dos corredores intermináveis da casa, havia mundos diferentes, com jardins onde se podia correr, música vinda sabia-se lá donde, a brisa a invadir o nosso corpo, e mães que prometiam às filhas: "quando tiveres catorze anos, dou-te licença para usares sapatos de salto alto."Eu era então muito pequena, e as tias admiravam-se de me ver tão interessada naquele livro enorme, sem bonecos, que se calhar até era de alguma delas: as tias tinham muitos livros mas, diziam, ler faz muito mal aos olhos e, além disso, tratar de uma casa dá muito trabalho e não há tempo para distracções.Naquele livro estavas tu. E o teu amigo Amaro, e o menino na cadeira de rodas, e as cantigas de Nestor, as risadas de Nico Pombo, os filmes de Gary Cooper e de Jean Harlow, e a tia Zina, e as discussões dos habitantes das pensão - e sobretudo aquela paixão pela vida que rebentava das palavras todas. Nessas páginas te encontrei, e foi contigo que aprendi que, mesmo em casarões escuros e no meio de gente com medo do sol, é sempre preciso acreditar que a claridade é mais forte, que a felicidade é possível, mesmo que se construa apenas com o cheiro dos jardins, meninas de cabelo a esvoaçar ao vento, música triste a sair das casas, pessoas que não conhecemos e nos sorriem pela manhã, as vidinhas banais de quem passa a nosso lado, e a voz das mães estendendo-se ao fim da tarde pelas ruas, chamando os filhos porque são horas de jantar. E foi contigo que descobri que a vida parece sempre melhor de manhã, com sol, vento fresco e céu azul. Se possível com gente que acabou de acordar e se debruça da janela e nos deseja um bom dia. Penso que seríamos todos mais felizes se os nossos dias começassem dessa maneira.Ensinaste-me a ser adolescente - e a sobreviver. Anos depois, ensinaste a minha filha. Tens ensinado muitas das minhas amigas adolescentes que, através de mim, te conhecem. Daqui a meia dúzia de anos espero que ensines a minha neta - que já está à tua espera. Acho que nunca te agradeci devidamente tudo o que fizeste por mim. Nem a ti nem a quem te deu vida e palavras: o escritor brasileiro Érico Veríssimo, no tempo em que do Brasil nos chegava a grande literatura e não as telenovelas. Acho que nunca te agradeci não apenas o teres-me ajudado a sobreviver a uma infância complicada e solitária, mas sobretudo o teres ensinado a todos os que te conheceram que, bem lá no fundo, a adolescência é sempre igual - seja nos anos quarenta, seja no ano dois mil. Pode o exterior mudar, podem usar gangas rasgadas, tatuagens nos braços, mangas até aos joelhos, calças a cair pelas pernas abaixo, pérolas no umbigo, cabelos às madeixas roxas e verdes, piercings na língua, vocabulário cabalístico, telemóvel colado à orelha - lá por dentro têm os mesmos medos, as mesmas inseguranças, as mesmas angústias, os mesmos (incofessavelmente românticos) sonhos. O pior de tudo é que hoje ninguém te encontra em Portugal. "Clarissa"?, espantam-se os editores, "está esgotado há uma data de anos e ninguém edita agora." Socorro-me de amigos brasileiros, de algumas idas ao Brasil, e lá vou trazendo alguns exemplares (no Brasil há edições lindíssimas com a tua história). Mas tenho muita pena que tenhas desaparecido das nossas vidas, sobretudo neste momento complicado em que, tenho a certeza, irias fazer muito bem aos meus amigos mais novos.Se eu mandasse, tu serias leitura obrigatória nas escolas.E tenho cá uma fé de que muita coisa seria diferente.Volta depressa! Fazes muita falta.
8 de março de 2007
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