17 de fevereiro de 2011

O Zé Botarras

— Já saiu toda a gente, Alice?
— Suponho que sim, D. Alda... só não vi no Cantinho da Leitura.
Efectivamente, a um canto, alguém estava debruçado sobre um livro, indiferente às horas de saída. Era o José Miguel.
Zé Botarras para os amigos. Migas para a mãe. E simplesmente José para o pai. Frequentava o 10º ano numa das secundárias da terra e já não era a primeira vez que a funcionária via aquele corpo esguio, vestido de preto, sentado ali naquele canto da biblioteca.
Agora que o via de pé, Alice lembrava-se que aquela mesma figura lhe tinha despertado a atenção há dois ou três dias atrás. O mesmo corte de cabelo, o mesmo blusão e aquele pormenor da tira de cabedal no pulso. Alice estava certa. Só achava estranho aquele isolamento. Sim, porque além de ir sozinho, só procurava a biblioteca em horas mortas.
— Vá lá, menino! Tencionas dormir cá? Se quiseres, podes requisitar o livro e acabar de lê-lo em casa.
Que não, mas “muito obrigado” e que desculpasse aquele esquecimento... havia livros assim! Não saiu sem repetir novamente o pedido de desculpas. A um canto, D. Alda assistia interessada àquelas cortesias algo despropositadas num rapaz de estranha aparência.
— Delicado este rapaz!
— É verdade, D. Alda — dizia a Alice encaminhando-se para a porta de saco na mão. — Não é todos os dias que se encontra um rapaz com aquelas maneiras. Mas reparou naquelas botarras?! Parecem do exército! Bem... ainda demora?
— Vou só dar uma espreitadela, não vá ficar alguma coisa ligada. Vá andando, Alice, saio já atrás de si.
Diligente, a bibliotecária confirmou as luzes e as janelas e, quando passava pelo Cantinho da Leitura, reparou numa folha solta sobre a carpete. Impressa, páginas 31/32 de qualquer livro... mas de qual? Virou-a dos dois lados, mas não havia indicação de título ou autor. Soltou-se, concluiu a bibliotecária com a folha na mão; os livros de hoje já não são o que eram, ou então o defeito era das mãos dos leitores, bem mais bruscas hoje em dia. Optimista, preferiu pensar que o problema era da segurança das lombadas e já congeminava uma forma de tirar partido pedagógico da situação.
Simples: promovia um concurso para descobrir o pé da Cinderela. Sim, porque em 22 000 volumes, era difícil descobrir qual o livro que não tinha as páginas 31/32 e, quem quer que tenha sido, havia folheado nesse mesmo dia o exemplar. Apelaria, assim, à descoberta e com direito a prémio. Com este novo projecto na cabeça, deixou, finalmente, a biblioteca.
Era Inverno, escurecia mais cedo e a vila enchia-se de luzes. Nas ruas e nas casas. No quarto, José Miguel aguardava que a mãe acabasse o jantar. Tinha, como sempre, programa à noite com os colegas e, apesar de se perder nas horas com os livros, gostava de pontualidade nos encontros com os da sua idade, para depois se perder também nas horas com eles. A mãe bem recomendava “Volta às onze, o máximo”, mas davam muitas vezes as doze badaladas e o José Miguel sem estar em casa. Aos fins-de-semana a situação piorava em pouco. A mãe, habituada até aí a um filho reservado, mas cumpridor e pacato, atribuía às recentes companhias do filho a razão dos seus hábitos nocturnos.
— O Migas mudou muito — era a sua voz a desabafar para o marido — desde que se meteu com aquele grupo do Bairro dos Cabeçudos. Se era calado connosco, mais calado ficou. E a roupa, Chico... só lhe lavo e passo peças pretas! Salvam-se as cuecas no meio daquela rouparia toda. E o cabelo?!... E a linguagem... Por acaso já o ouviste falar ao telefone?! Parece conversa de latrina, quase outra língua!
— São fases, Assunção! — conciliava o marido, sem deixar de olhar para o jornal desportivo. — Mais uns anitos em cima e tudo isso passa. Quando andar na universidade...
— Se não se perder pelo caminho! Eu não o vejo pegar num livro e olha que as notas do 1º período não foram grande coisa!
— Está numa escola nova... e olha que o rapaz lê! Sabes de onde é que o vi hoje sair às seis e tal? Da Biblioteca Municipal! Isso mesmo! O teu rapaz também anda metido com livros. Se calhar, agora no quarto, está de volta deles!
— Ou a olhar para o relógio à espera da hora de jantar! Ele quer é sair! — arriscava, não convencida, a D. Assunção.
Enganavam-se os dois. José apareceu nesse momento à entrada da cozinha, reclamando pela escova de engraxar calçado. É que estivera de volta das botas e gostava delas a brilhar.
— Deves querê-las que nem espelhos para penteares essa madeixa! A escova está ali junto do tanque — diz a mãe, tirando as últimas batatas da fritadeira.
Que deixasse o cabelo e as botas... e acabasse antes o jantar, que a fome apertava.
— E os amigos também!... ‘Tá bem, vamos lá para a mesa!
Jantaram calados e José saiu. Lustroso, madeixa a preceito, fez-se a caminho da casa do Sampaio. Dali partiram para o café da Estrelinha onde o grupo já devia estar. A música estava ligeira nessa noite, ainda menina, e, entre cigarros e cervejas, foram desfiando as aventuras da tarde. O Teixeira tinha estado a curtir umas músicas do último CD dos Nirvana... com a miúda, claro!... Onde?! Onde havia de ser?!! Na sala de estar dos Teixeiras, óbvio! O Alferes tinha andado de volta do trabalho de História que já deveria ter sido entregue há duas semanas. Que seca!... Limitou-se a copiar umas coisas de uma enciclopédia... e nem capa punha... o Macaco-pré-histórico não merecia mais! O Sampaio tinha andado a experimentar a Scooter da Nelas e tinha dado cá um speed na Av. 25 de Abril! As miúdas não sabiam apert ar no acelerador!
— E o Zé Botarras? A cismar com a Rosa, hem?!
Que nem pensasse nisso, toda a tardinha em conversa com uns tipos porreiraços que não via desde o ciclo.
— Quem? Chuta daí, ó Zé! — insistiram os colegas. Limitou-se a responder que não conheciam. Da ida à biblioteca nem uma palavra. O que diriam dele! Há coisas que não se podem dizer em nenhum sítio. Mesmo assim, com todas as suas cautelas, já tinham descoberto a sua paixoneta pela Rosa. Só porque um dia o apanharam a desenhar um botão. Que coisa mais careta! P’ró que lhe havia de dar: desenhar e pintar uma rosa! E tinha ficado linda! Fraquezas perigosas para um adolescente de 15 anos... de negro vestido. O que não diriam eles se soubessem que costumava gastar três ou quatro horas por semana na biblioteca?! Um perfeito betinho! Ainda por cima a ler letra miúda. Ainda se fossem revistas musicais ou Banda Desenhada! Estava decidido... nem uma palavra para eles. Até porque se divertia à brava com esta trupe do Bairro dos Cabeçudos. Fixes! Loucos a valer!
No outro dia, à mesma hora, lá estava o José Miguel na biblioteca. Precisava de ler o último livro de Tom Sharpe e tinha mais descanso ali no fim da tarde, sem os amigos ou a mãe por perto. Depois... andar com um livro debaixo do braço não fazia o seu estilo e sabe-se lá o que a Rosinha diria se o encontrasse.
— Com que então a acabar de ler o livrinho! — pergunta-lhe a Alice sorridente, reconhecendo o cliente atrasado do dia anterior. — Olha, dá uma vista de olhos ao anúncio do concurso que está no átrio. Pode ser que ganhes, já que és um leitor assíduo!
José Miguel desejava que esta última frase tivesse sido mais discreta. Sabe-se lá quem poderia tê-la ouvido na sala. E estava na sua hora de clandestinidade. Concurso... foi ver o que dizia.

PÁGINA SOLTA
À PROCURA DO SEU LIVRO

Queres ajudar esta página? Soltou-se do seu livro e foi encontrada desolada e órfã no chão da biblioteca. Se fores um leitor atento, podes dar-lhe uma ajudinha!

COMO?

Talvez pelo tipo de linguagem
Talvez por referências dispersas do texto

Vai eliminando hipóteses:

§ ficção ou ensaio?
§ nacional ou estrangeiro?
§ recente ou antigo?

Se descobrires ou quiseres dar um palpite, escreve num comentário.

Formou-se uma roda de jovens em torno do cartaz e, pelas expressões, ninguém parecia reconhecer a página. Apenas José Miguel examinava com atenção o texto, detendo-se nalguns nomes que lhe pareciam familiares. Mas sentia-se comprometido naquele grupo e afastou-se. Pediu à funcionária que lhe facultasse uma fotocópia da página e foi para o lugar. D. Alda tinha pensado em tudo – havia um pequeno número de cópias para o concorrente mais reflexivo.
O Wilt de Tom Sharpe ficava para mais tarde. Tinha de resolver primeiro este enigma. Pegou na folha, puxou de um lápis e começou a sublinhar palavras; de vez em quando levantava a cabeça, voltava a página, lia do outro lado, mordia na ponta do lápis e, numa mordidela mais profunda, a cara iluminou-se-lhe de revelação. Teria descoberto? Levantou-se, dirigiu-se às estantes de literatura estrangeira e começou a varrer com os olhos os títulos. Parecia ter encontrado a prateleira certa e, com o auxílio do dedo, separava os livros um a um. Tirou três: o primeiro tinha as páginas 31/32, o segundo também e o terceiro... lá estava! Sem a dita folha. O sapatinho de cristal tinha acabado de entrar no pé! Satisfeito, dirigiu-se ao gabinete da bibliotecária e bateu delicadamente à porta.
À sua frente, D. Alda tinha o jovem simpático do dia anterior. Com o livro na mão.
— Parece que descobri! — limitou-se a dizer o rapaz.
— Bravo!... Os marginais de S. E. Hilton. Já tinhas lido?
— Há uns tempos atrás, li os dois livros da autora publicados em português: Tex e Juventude inquieta. Este ainda não. Foi através de algumas palavras das páginas que cheguei lá.
— Explica-me como foi...!!! — D. Alda esperava que ele se identificasse.
— José, José Miguel. Repare aqui na página 31 — e mostrou-lhe na página rabiscada o fio da sua dedução. — ‘Tá a ver aqui estas palavras inglesas... Cherry... Ponyboy... só podia ser ficção inglesa... ou então americana! Mais cá em baixo... aqui está rodeo, era americana! Depois o estilo de escrita é vivo, cheio de diálogos e coisas assim... tinha de ser livro recente e para malta, digo, gente da minha idade. Depois fala-se aqui de seitas de jovens que lutavam nas ruas e isso fez-me lembrar um filme do... Coppola... Francis Ford Coppola, que vi recentemente na televisão, por sinal baseado neste livro. Foi nessa altura que fui à estante e não foi difícil dar com ele... precisamente aquele que não tinha lido!
— Brilhante, José Miguel! Amanhã podes passar por cá para receberes o prémio. Um livro, se não te importas.
Não se importava nada. Agradecia-lhe muito. Foi satisfeito para o lugar e mais satisfeito ficou quando se encaminhava para casa, meia hora mais tarde. É que tinha visto a Rosa e tinham-se cumprimentado. Ela trazia o cabelo apanhado, como ele gostava, e a rapariga prometera-lha um poster dos AC/DC de que ele não gostava, mas ela pensava que ele gostava. E ele precisava de gostar do que ela e os amigos gostavam para todos gostarem dele. E ele gostava de livros (alguns, claro!), e os outros... não!
Este conflito de gostos dilacerava-lhe a cabeça. Quem era ele, afinal? O que os outros esperavam dele ou o que ele próprio sentia? Será que podia continuar a ser dois ao mesmo tempo? Tinha mesmo de se esconder dos outros para ler? Ser... parecer... “to be or not to be”... chegado a esta essência filosófica, começou a sentir-se mais forte, com uma personalidade para afirmar. A começar por casa. Nessa noite ao jantar, afirmou-se na carne estufada. Estava rija e demasiado apaladada. Não comia!
Quando se encaminhava mais tarde para casa do Sampaio, afirmou-se numa pedra e chutou. Azar. Não lhe calculou bem o tamanho e, apesar das suas botarras, magoou-se no dedo grande. Sentou-se num banco ali perto para amansar as dores e repensar as suas afirmações.
Ele queria ser ele próprio mas... a carne assada da mãe não tinha culpa e muito menos a pedra. Onde estava, afinal, o seu problema? Olhou para as horas. O amigo não gostava de esperar. Juntou-se ao Sampaio, ao Teixeira e ao Alferes e a todos os outros que apareceram no Café Estrelinha. As conversas do costume, que são, afinal, as da sua idade. Para quê debates?!
— Agora vamos todos p’rà garagem do Serafim! Um assalto! O gajo tem lá música da pesada.
E foram e José Miguel gostou. A sua mãe um pouco menos, porque esteve acordada até às duas da manhã. No outro dia teve aulas até às 17.30. Ainda passaria pela biblioteca para ver o livro que a D. Alda lhe reservava de prémio. Desculpou-se como pôde com os amigos e apressou o passo. Junto ao largo que dá acesso à biblioteca, avistou a Rosa que vinha na mesma direcção. Parou, voltou para trás e... uf!... perdeu-a de vista. Que encontro mais inconveniente!
Subiu, enfim, as escadas e dirigiu-se para o gabinete da bibliotecária. Lá estava sobre a secretária o embrulho da sua prenda. Os marginais, que tinha descoberto no dia anterior.
— Como foi o único da autora que ainda não leste, achei que irias gostar — diz-lhe ela.
E tinha mesmo gostado. Marginais. Marginais como ele, afinal, que fazia dos livros um ghetto clandestino. Tinha de... Alto aí! Através do separador envidraçado do gabinete, avistou um rabicho conhecido na sala de leitura. Era a Rosa. A Rosa na biblioteca. José Miguel nem queria acreditar. Saiu do seu ghetto e dirigiu-se ao lugar da rapariga. Sentou-se à sua frente. Ela olhou-o espantada:
— Tu por aqui?! Olha que não te trouxe o poster! Não fazia a mínima ideia de te encontrar aqui!
— Esquece o poster. Afinal, já não o quero. Já não cabem nas paredes e preciso até de limpar o quarto. Ainda demoras aqui?
— Um bocadito. Preciso de procurar um livro na estante para levar para casa — respondeu a Rosa sem entender muito bem aquela do poster.
— Se quiseres este, empresto-to. Acabo de o receber agora como prémio. Foi a bibliotecária que mo deu agora mesmo.
— Mas vens muito aqui? — Rosa cada vez o entendia menos.
— Sim, sim... — e dava pormenores. — Olha, no outro dia, até me esqueci das horas e foi a funcionária que...
Pelo caminho para casa, José Miguel foi-lhe revelando a sua faceta escondida. O seu outro lado secreto, e Rosa até achava aquilo engraçado. Despediram-se com um aperto de mãos mais prolongado. Ao jantar mastigou bem a carne, desta vez sim, um pouco rija! A caminho da casa do Sampaio, já não chutou em pedras. É que tinha acabado de engraxar as botas. O Zé Botarras!
Natália Caseiro
Os devoradores de livros
Leiria, Editorial Diferença, 1999
(adaptação)

via A Equipa Coordenadora do Clube das Histórias
http://es@contadoresdehistorias.com

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