Bolo Rei
Todos os anos, quando os velhos Reis Magos acabam de atravessar pequena estrada de areia que se esboça entre caminhos de musgo e lagos feitos de bocados de espelho partido; quando a estrela de prata que se suspende entre os dois exemplares de “A Paleta e o Mundo” de Mário Dionísio se recolhe para regressar à velha caixa de papelão, com trinta anos de viagens, cheia de bocados de jornal amachucados que ainda guardam notícias de dias que já foram e onde se embrulham os cordeirinhos, os pastores, as oferendas várias que o Menino Jesus recebeu, apesar de já lhe faltar a mãozinha direita que alguém partiu em excesso de limpeza; todos os anos, dizia, recordo a história que o Fernando Midões me contou, certa tarde em que misturámos poemas com lágrimas.
De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista engomada, cheias de silêncios e reverências.
Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar-se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora.
Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas, pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o brilho dos copos de cristal.
Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à distribuição nos pratinhos de sobremesa.
— Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem!
E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado do paladar, se comeu a sobremesa.
A prenda calhou à criada.
— Que sorte! Mostre lá!
— Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade. Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica.
— E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo?
— Come que está bom e fofinho!
Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em negativas.
— Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras: queres mais um bocadinho de bolo?
— Ao menos acaba esse!
— Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá.
Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe. Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando!
Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão.
— Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu?
— Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é?
Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada, ralha:
— Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te tenho dado? Se o teu pai fosse vivo…
Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz, a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez:
— É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele.
E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia, quente ainda, do esconderijo em que estivera.
E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo, sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que a mãe o aconchegou junto de si.
Sem palavras, mãe.
Sem palavras.
De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista engomada, cheias de silêncios e reverências.
Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar-se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora.
Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas, pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o brilho dos copos de cristal.
Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à distribuição nos pratinhos de sobremesa.
— Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem!
E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado do paladar, se comeu a sobremesa.
A prenda calhou à criada.
— Que sorte! Mostre lá!
— Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade. Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica.
— E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo?
— Come que está bom e fofinho!
Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em negativas.
— Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras: queres mais um bocadinho de bolo?
— Ao menos acaba esse!
— Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá.
Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe. Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando!
Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão.
— Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu?
— Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é?
Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada, ralha:
— Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te tenho dado? Se o teu pai fosse vivo…
Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz, a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez:
— É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele.
E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia, quente ainda, do esconderijo em que estivera.
E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo, sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que a mãe o aconchegou junto de si.
Sem palavras, mãe.
Sem palavras.
Maria Rosa Colaço
Viagem com Homem dentro (adaptação)
Leiria, Editorial Diferença, 1998
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